Fosfoetanolamina e câncer

Nas últimas semanas você deve ter visto nas redes sociais campanhas pela liberação da fosfoetanolamina como medicamento contra o câncer. Junto a isso começou uma séria discussão envolvendo ANVISA, USP (Universidade de São Paulo), Ministério Público, pacientes com câncer, um professor aposentado da USP e até políticos.

Assim como no caso do Instituto Royal em 2013, a causa de toda a comoção nacional surge do abismo existente entre sociedade e pesquisadores. A falta de divulgação científica e conhecimento leva a crenças e fantasias sobre assuntos científicos. Por esse motivo, o Tem Ciência no Teu Chá fará uma série de posts sobre desenvolvimento de novos medicamentos, esclarecendo o processo de pesquisa, desenvolvimento e descoberta de novos fármacos.

Nesse primeiro post vamos entender o caso da fosfoetanolamina, sem emoção, fantasia ou interesses políticos ou econômicos. Vamos falar da fosfoetanolamina do ponto de vista científico e sobre o que falta para ela ser um medicamento para tratamento do câncer.

Se você não sabe o que está acontecendo leia o último parágrafo.

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Vamos começar, pelo inicio:

O que é a fosfoetanolamina?

É uma amina primária envolvida na biossíntese de lipídeos. É percursor central na síntese de fosfolipídios que formam as membranas das nossas células. Isso quer dizer que nós temos fosfoetanolamina no nosso organismo e que ela é convertida em outras substâncias que formam as membranas das células. Além da função estrutural (formar a membrana celular), esses fosfolipídeos possuem função sinalizadora, isso é informam nosso organismo de algumas situações que as células estão passando. Uma via clássica de sinalização por lipídeos é, por exemplo, a inflamação.

A fosfoetanolamina cura o câncer?

Antes de mais nada é importante falar que é pouco provável que uma única substância seja capaz de curar para todos os tipos de câncer. Isso porque cada tipo de câncer apresenta características muito específicas, pense por exemplo em câncer de mama e leucemia, são coisas bem diferentes.

Existe na literatura 5 artigos falando dos efeitos da fosfoetanolamina em modelos experimentais de câncer. Nesses estudos a fosfoetanolamina apresentou efeito antitumoral (diminuir tumor) em testes in vitro (placas com células) e em dois modelos usando camundongos (in vivo).

Isso é tudo o que se sabe realmente sobre essa substância e câncer.

Ela não foi testada em humanos, não se sabe direito como ela age, ela não foi testada em outra espécie que não seja camundongo e em camundongos ela não foi nem sequer administrada por via oral.

Igual a ela, existe na literatura milhares de moléculas, que foram e estão sendo testadas em diversos modelos de câncer, com resultados tão bons quanto a fosfoetanolamina ou até melhores que ela. No entanto, nenhuma delas pode ainda ser chamada de medicamento, muito menos de medicamento antineoplásico (para tratar câncer) e muitíssimo menos podem ser consideradas a cura do câncer.

Eu não estou dizendo que ela não tem efeito,  estou dizendo que entre o que se sabe da fosfoetanolamina hoje e ela ser a cura do câncer existe muita pesquisa a ser feita. Um longo caminho que não pode ser abreviado.

Quais efeitos ela teve nesses estudos?

Os 5 estudos que estão publicados sobre fosfoetanolamina e câncer mostram o seguinte:

– em cultura de células (células dentro de plaquinhas): apresentou ação contra células análogas a melanona, tumores de mama e num modelo que utiliza células neoplásicas de camundongos (Tumor Ascítico de Ehrlich).

– em camundongos: apresentou resultados positivos em um modelo de leucemia e num modelo para avaliar metástase.

Esses resultados não são suficientes para dizer que ela tem ação contra o câncer?

Tudo o que foi visto com a fosfoetanolamina foi em modelos experimentais. Embora esses modelos forneçam uma indicação de que ela possa funcionar em tumores reais em humanos, não se sabe se em humanos ela teria efeito.

Outras substâncias, que tinham um perfil muito promissor em modelos como esses não tiveram efeito em humanos. Isso porque existem muita diferença entre agir numa placa com células e agir no corpo humano.

Pense bem, para a fosfoetanolamina funcionar num tumor de mama em humanos, por exemplo, ela primeiro precisa chegar até o tumor de mama. No momento não sabemos nem se ela é absorvida por via oral, nem quanto dela chega no sangue. Depois de chegar no sangue ela precisa chegar até o tumor mamário, e nós também não sabemos se ela chega. Depois de finalmente chegar no tumor será que ela vai agir da mesma maneira que agia na placa? Não sabemos. Será que ela vai agir como agia no camundongo? Não sabemos.

Para isso precisamos do teste em humanos.

Por que ainda não fizeram testes em humanos?

Os teste clínicos são caros e precisam de uma estrutura ainda maior que a utilizada para teste em animais. Eles também só podem ser feitos após a substância ser aprovada por todas as fases pré-clinicas. Para a fosfoetanolamina faltam inclusive mais estudos pré-clinicos.

A ANVISA, ela não tem participação em testes em humanos.

O que está nas resoluções da ANVISA para aprovação de medicamento é que o solicitante do registro do novo medicamento deve apresentar os resultados dos testes pré-clinicos (em placas e animais) e clínicos (em humanos) e a agência avalia a aprovação do medicamento, mas de fato ela não se envolve no teste

Então quem deveria fazer esses testes?

Bom, eu acho que essa é a solução da questão. Em vez de campanhas para que a ANVISA libere a fosfoetanolamina (coisa que ela não tem como fazer nesse momento), a campanha deveria ser por investimentos para que os teste clínicos possam ser realizados. Que o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) fizessem editais específicos apoiando financeiramente a realização desses testes. Para que após a realização dos testes corretos, se a fosfoetanolamina tiver realmente efeito antitumoral interessante, que então seja feita a aprovação dela como medicamento junto a ANVISA.

Mas as pessoas que já tomaram fosfoetanolamina não servem como prova de que ela funciona?

O que foi feito, nem de longe, pode ser considerado uma prova clinica.

Ninguém sabe a dose que foi usada, ninguém sabe o efeito real que teve nos tumores, ninguém sabe os efeitos adversos que as pessoas tiveram, ninguém sabe nem quantas pessoas tomaram essa substância.

Os estudos clínicos, como vamos ver nos próximos posts, são compostos de várias fases bem controladas, para garantir a segurança do medicamento, dose, efetividade, efeitos adversos, etc.

A fosfoetanolamina pode causar algum prejuízo a saúde?

Para a fosfoetanolamina não foram feitos, que se saiba, estudos de toxicidade. Esses estudos fazem parte dos testes necessários na fase pré-clinica, antes de ser administrado em humanos. Sem estudo de toxicidade não se pode dizer que ela não cause danos a saúde, muito menos que ela seja segura. Os testes de toxicidade geralmente precisam ser feito em mais de uma espécie, porque a toxicidade varia de espécie para espécie. A fosfoetanolamina foi administrada somente em camundongos.

Então antes dos testes clínicos, ainda são necessários estudos de toxicidade para que então ela possa começar a ser estudada em humanos.

Nós próximos post vamos entender como surge um novo medicamento e todas as fases e testes que ele precisa passar para chegar na prateleira da farmácia. Isso vai ajudar você a entender os passos necessários para a liberação da fosfoetanolamina e porque é tão complicado encontra novos medicamentos.

Para você que não ouviu nada sobre fosfoetanolamina e quer entender o que está acontecendo:

A fosfoetanolamina é uma substância que foi estudada desde os anos 80 por um grupo de pesquisa da USP. Ela apresenta efeitos interessantes em modelos para avaliar ação antitumoral in vitro (em placas e tubos) e in vivo (em animais). Acontece que aparentemente, o pesquisador responsável forneceu essa substâncias a alguns pacientes com câncer e isso virou uma bola de neve. As pessoas começaram a procurar a USP para conseguir a fosfoetanolamina, mas o pesquisador se aposentou e a USP diz que não tem condições de produzir essa substâncias. Além disso, como a fosfoetanolamina não está aprovada na ANVISA, a utilização dela com fins terapêuticos é proibida. No meio de tudo isso, os pacientes que usavam a substâncias entraram na justiça pedindo o direito de ter acesso a fosfoetanolamina e continuarem o tratamento. O problema é que ninguém sabe se a fosfoetanolamina de fato funciona, nem se ela é segura, nem sequer em que dose deve ser utilizada. Existe uma campanha nas redes sociais e junto ao Ministério Público para que a ANVISA libere a fosfoetanolamina como medicamento, mas a ANVISA não tem como aprovar um medicamento que não foi testado em humanos. A coisa está tomando proporções tão grandes que políticos já começam a se envolver no caso para tentar resolver a situação. Fonte: http://glo.bo/1GNGBp4

 

Pesquisadores devem informar se recebem patrocínio, verba ou prestam consultoria a industrias farmacêuticas em suas publicações e apresentações em congressos. Isso é chamado conflito de interesse e tem o objetivo de esclarecer para os leitores se pode haver alguma influencia nos dados e opniões apresentados. Por isso acho que é correto dizer, que nós do Tem Ciência no Teu Chá não temos vinculo com nenhuma indústria farmacêutica.

Crédito de imagem: Icy and Sot  http://icyandsot.com

Para saber mais:

Esclarecimento do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP:http://bit.ly/1ONSF04

Esclarecimento da ANVISA sobre o caso: http://bit.ly/1PrFQKw

Esclarecimento da FIOCRUZ: http://bit.ly/1Lwrjao

Comunicado da USP: http://bit.ly/1NOWO5s

Outras leituras: http://bit.ly/1QJw8kk, http://bit.ly/1GdnhH9