Por que ainda usamos animais em pesquisas?

A invasão ao centro de pesquisa Instituto Royal na semana passada reflete claramente a falta de dialogo entre cientistas e a população. Parece haver um abismo entre o mundo científico e a comunidade.  
Alguém, afinal de contas, sabe o que faz um cientista? Como é feita pesquisa na área biomédica? Como é descoberto um novo medicamento? O que é um experimento científico?
Não! Ninguém fora do mundo acadêmico da ciência sabe alguma dessas respostas.

Da falta de conhecimento, dialogo e interação surgem opiniões equivocadas, discórdia e julgamentos precipitados, tanto do lado dos ativistas como do lado dos cientistas. A verdade é que em qualquer área é complicado alguém ser contra ou a favor de algo sem conhecimento sobre o tema. Por isso, por mais que esse post possa ser julgado e mal interpretado, vou tentar explicar porque em pleno século XXI ainda precisamos utilizar animais para fazer ciência e o que podemos fazer para melhorar essa realidade.

Primeiro: Como um novo medicamento chega até a farmácia?

Existem muitos caminhos para se descobrir um novo medicamento, vou usar um exemplo bem brasileiro para poder explicar. Vamos supor que se acredite que uma planta da Amazônia possa tratar tumores cerebrais. Primeiro serão isoladas várias substância presentes na planta, que possam ser responsável por esse suposto efeito. Essas substâncias começam a ser testadas em modelos in vitro. In vitro são as técnicas feitas em tubos de ensaio ou placas que não utilizam animais. Essas técnicas são empregadas para saber se essas substâncias possuem ações uteis para tratar a doença, como e onde elas agem. Mesmo usando técnicas in vitro, muitas delas precisam de pelo menos um animal para fornecer material para os testes, como sangue e tecidos que não podem ser sintetizados em laboratório. Dessa forma, ainda que técnicas in vitro não utilizem o animal propriamente dito, em muitos casos serão necessários animais para fornecer material para os testes.

Vamos supor agora que uma das substâncias isoladas da planta da Amazônia tenha efeito nos testes in vitro. Ela precisa agora ser testada em animais. Mas por que???!!!! Porque precisamos saber se essa substância quando utilizada pela via oral é absorvida e chega a corrente sanguínea. Precisamos saber também se ela chega ao cérebro para atingir o tumor cerebral, já que nem tudo que está no sangue chega no sistema nervoso central.  Precisamos saber se ela não é tóxica para outros órgãos do corpo. Precisamos saber se num cérebro inteiro ela ainda mantém a ação que tinha no tubo de ensaio. Essas perguntas somente teste em animais poderão resolver. É fato, não existe nada que possa substituir, nesse momento, o uso de animais para responder essas questões. Aqui eu dei um exemplo de câncer cerebral, mas poderia ser inúmeras doenças como outros cânceres, hipertensão, diabetes, esquizofrenia, autismo, epilepsia, infarto, AVC, e todas as doenças que você conhece e que queria que existisse uma cura. Para as doenças psiquiátricas existe uma complicação ainda maior, não existem modelos in vitro para doenças como esquizofrenia, autismo, depressão, ansiedade, insônia, epilepsia, Parkinson, Alzheimer e tantas outras que afetam comportamentos complexos. Assim também memória e aprendizado não podem ser estudas em tubos de ensaio e são somente estudas em animais vivos.   

Depois de ser aprovada em todos os testes com animais a substância passa a ser testada em humanos. Os ativistas contra o uso de animais tem razão quando dizem que os testes em animais não substituem os testes em humanos. Isso é verdade, mesmo substâncias aparentemente seguras e promissoras em animais podem ser tóxicas ou ineficazes em humanos. Mas então porque não se testa direto em humanos? Somente após ser testada e aprovada em testes que indiquem sua efetividade e segurança é que os futuros medicamentos serão testados em humanos.

Segundo: Por que não se testa em humanos em vez de outros animais?

Nós humanos, embora muitas vezes esqueçamos, também somos animais. A ideia de testar novos medicamentos diretamente em humanos é completamente inviável. As razões são muitas, vou citar apenas as mais importantes: 1) Os animais mais usados em pesquisa são ratos e camundongos. Um camundongo é adulto com dois meses, dessa forma se pode avaliar se um medicamento usado na infância afeta a vida adulta em apenas 2 meses. Para fazer isso em humanos teríamos que esperar no mínimo 18 anos. 2) Quem seria voluntário? Você aceitaria tomar uma substância que pode te matar ou deixar você vegetativo em minutos? Uma substância que não se tem a menor noção dos efeitos e doses? Acho que não né. 3) Todos os humanos usados nesses testes teriam que viver no mesmo ambiente, mesma temperatura, comer a mesma comida, dormir o mesmo número de horas, beber a mesma quantidade de água, pois essas condições podem afetar os resultados dos teste. Isso, mesmo que alguém aceitasse, seria inviável economicamente. 4) A quantidade de substância a ser testada seria enorme. Muitos estudos com plantas usam justamente camundongos na fase inicial pelo baixo peso destes animais. Isso porque não existe quantidade suficientes de novas substâncias até que se descubra como sintetizar (lembra da planta da Amazônia?). Não haveria compostos suficientes para testar em seres humanos de 60kg. 5)  Existem sugestões que, sinceramente, me assustam como usar presos para os testes. Acho que não preciso comentar nada sobre isso, ok.

macaco

Terceiro: Mas não existem técnicas alternativas?

Como citei no exemplo da planta da Amazônia, não existem modelos para substituir completamente os animais em todos os experimentos. Não temos avanços tecnológicos para fazer tudo em computador ou em tubos de ensaio. Técnicas alternativas melhoraram muito ao longo dos anos. Hoje se utiliza bem menos animais que se utilizava no passado. No entanto até para descobrir técnicas alternativas é necessário usar animais para entender melhor os sistemas e as doenças e assim desenvolver novas técnicas. Os animais não são utilizados somente para descobrir novos medicamentos, mas também para entender doenças, descobrir como nosso organismo funciona e produzir vacinas. Estimular o desenvolvimento de novas técnicas que não utilizem animais é uma ferramenta vital e vem sendo feita em muitos laboratórios, mas o caminho em descobertas científicas é muito longo. Melhoramos muito nos últimos anos, mais ainda temos muito a melhorar.  

Para o ensino os animais praticamente não são mais utilizados já que programas de computador, vídeos e outras ferramentas didáticas conseguem suprir as demandas de ensino de alunos da área da saúde.

Quarto: Os animais são mal tratados nesses testes?

O país possui o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) que determina normas para o uso de animais em instituições de pesquisa e ensino. Todos os estabelecimentos que utilizam animais em experimentação devem estar cadastrados no CONCEA. Baseados nas normas de experimentação do CONCEA, todas as instituições que utilizam animais hoje possuem, obrigatoriamente, um comitê de ética. Os comitês de éticas em experimentação humana e animal (sim os experimentos em humanos também são normatizados) de cada centro de pesquisa avaliam TODOS os projetos a serem executados. São os comitês de ética que avaliam quais experimentos são justificáveis, quais as melhores técnicas para evitar sofrimento nos animais, quantos animais serão necessários para cada experimento e todos os aspectos éticos envolvidos num projeto de pesquisa. NENHUM projeto de pesquisa hoje é executado sem aprovação do comitê de ética, até porque só se obtém animais para experimentos com a aprovação do comitê.  

Uma coisa que quase ninguém sabe é que dentro dos comitês de ética é obrigatória a presença de representantes de associações de proteção aos animais. Então quem aprova um projeto envolvendo animais e as técnicas que serão utilizadas nesse projeto não são somente cientistas, mas também pessoas de entidades civis defensoras de animais.

Pelas regras do CONCEA também é obrigatório um veterinário responsável pelos procedimentos de um laboratório e pelos biotérios onde ficam os animais. Isso tudo para garantir que os animais sejam tratados de maneira correta e vivam em ambientes adequados.  

O que eu quero dizer com tudo isso é que ainda que se precise utilizar animais em pesquisa eles são melhores tratados e sofrem bem menos estresse que muitos animais domésticos. Pelo menos existe fiscalização e regras para a utilização desses animais, coisa que não existe em muitos lares.

Quinto: Mas precisa usar cachorro?

Infelizmente, precisa. Os animais mais utilizados em pesquisa são os roedores: ratos e camundongos. Mas vários testes, principalmente os teste finais de toxicidade, precisam ser feitos em mais de uma espécie. Daí além dos roedores é necessário usar cachorros, coelhos ou outra espécie. Os cachorros causam uma comoção maior que os ratos, por serem tão próximos de nós humanos. Mas independente de serem ratos, camundongos, coelhos, cachorros, peixes ou macacos todos devem ser tratados com o mesmo cuidado e respeito.

Sexto: E os cosméticos?

Algumas empresas de cosméticos utilizam uma jogada de marketing e dizem que não fazem teste em animais. Isso é uma enganação! A verdade é a seguinte: ou essas empresas terceirizam os testes (outras empresas testam os produtos em animais por elas) ou elas utilizam substâncias que já foram testadas. Sabem por que eu sei disso? Porque a ANVISA (ou qualquer agencia reguladora de qualquer país) só aprova produtos cujos componentes tenham sidos testados e tenham segurança comprovada por testes de toxicidade. Então não adianta dizer que não testa em animais, porque se o produto tem registro, seus componentes foram sim testados em animais. Hoje em dia não é mais necessário testar o produto final, como era feito com shampoos antigamente, se aceita que se os componentes foram testados separadamente, juntos devem ser seguros.

Então minha amiga a verdade é que do seu shampoo antiqueda, a sua base MAC, passando pelos novos cremes BB, pelos primes pré-maquiagem e os esmaltes de longa duração, TUDO foi testado em animais. E qualquer novo princípio ativo revolucionário do mundo dos cosméticos também será testado neles.  Não seja enganado por empresas de cosméticos!!!

CAMUNDONGO0020/CAMPINAS/SP 05/07/2012/ESPECIAL DOMINICAL/OE/EXCLUSIVO/VIDA&.Na foto o Biotério  com camondongos especiais no laboratório de Modificação de Genomas .FOTO EPITACIO PESSOA/AE

Sétimo: Quem são os cientistas?

O post já está bem grande, mas ainda temos umas linhas para falar de quem faz a ciência. Cientistas da área biomédica são profissionais que decidiram estudar anos e anos, que trocaram altos salários para serem da classe média, que dedicam anos das suas vidas a descobrir novos medicamentos e a entender as causas de tantas doenças desconhecidas. Os cientistas reais não se parecem em nada com os que aparecem nos filmes de ficção científica. São pessoas comuns que estudam muito para ajudar a salvar vidas. Nunca conheci um cientista que gostasse de trabalhar com animais, inclusive esse é um dos maiores obstáculos a ser vencido quando se inicia na ciência. Não entendo porque os cientistas são vistos como criaturas cruéis enquanto o que eles fazem é criar a possibilidade de salvar vidas.

Você não se emociona com a possibilidade de um tetraplégico voltar a andar com células tronco? Um paraplégico poder dar o chute inicial na copa de 2014? Uma criança cega voltar a enxergar com um transplante de córneas? Mulheres vencendo a luta contra o câncer de mama? Idosos vivendo com saúde aos 90 anos? Mulheres sendo mães com 40 anos? Pessoas com o vírus da AIDS vivendo mais de 30 anos sem ter a doença? Milhares de vidas sendo salvas por transplantes todos os anos? Isso tudo graças à vida de animais de laboratório e a cientistas que também dedicaram suas vidas a salvar outras vidas.

1. Site do CONCEA com legislações e normas –> http://bit.ly/1h9Ab96
2. Sociedades de pesquisa do país –> http://bit.ly/16w2LKm ;http://bit.ly/18cOj9U ; http://bit.ly/HfwPEt
3. Vídeo sobre uso de cachorros em pesquisas biomédicas –> http://bit.ly/1cYTtLQ